A linguagem e o horror, por Tarso Genro
Fui convidado para, periodicamente, escrever no Sul 21, do qual sempre fui um entusiasta. Sempre defendi a necessidade de termos, aqui no Rio Grande, um espaço de oxigenação alternativo aos meios de comunicação tradicionais. Um espaço que abrisse escotilhas para a divulgação de opiniões, fora do controle dos padrões empresariais, que caracterizam a chamada grande imprensa. Estes padrões, independentemente da qualidade e seriedade dos seus jornalistas, estão muito longe de esgotar a enorme pluralidade de vozes, necessárias para enriquecer um projeto democrático autêntico.
Aceitei a proposta e combinei com a direção do Sul21, o seguinte: primeiro, não vou debater, aqui neste espaço, posições específicas “de Partido”, pois não quero me somar (nem por distração) à campanha programada, que está sendo feita, no país, para desautorizar os partidos, todos, num ódio udenista à política que pode comprometer o nosso futuro democrático; segundo, não vou fazer comentários sobre o Governo estadual, pois é sabido que fui derrotado nas eleições do ano passado e que o Governo atual representa uma maioria política, que se formou em contraposição ao Governo da Unidade Popular RS, o que implica em dizer que eu poderia ser apontado como “suspeito” (pelo menos por enquanto), de não ter posições racionais sobre ele; terceiro, propus que os meus textos tentassem estimular uma reflexão sobre a questão democrática, a partir da comunicação, da literatura, da experiência de outros países, sem atacar pessoas ou instituições, sem qualquer disfarce de neutralidade, mas procurando estimular reflexões que vão mais além da difícil conjuntura que atravessamos.
Na Alemanha do pós-guerra (1947), Hans Richter convocou um grupo de intelectuais para discutir a situação do país. O Grupo 47, que resultou do debate, foi celebrado por Gunter Grass, numa novela pouco conhecida no Brasil, “Encontro em Telgte”. (Divulgação)
Neste primeiro artigo optei por lembrar um fato histórico, que ocorreu na Alemanha do pós-guerra (1947), quando Hans Richter convoca os grandes intelectuais da Alemanha, para refletir sobre a função dos seus pares numa nova Alemanha, dividida e miserável, na qual o próprio idioma foi “violentado” e “desnaturalizado”, durante quinze anos de nazismo. O já dissolvido Grupo 47, que resultou do debate, foi celebrado por Gunter Grass, numa novela pouco conhecida no Brasil, “Encontro em Telgte”. A novela relata uma reunião realizada trezentos anos antes, de filólogos, historiadores e escritores da época, para revisar e consolidar o idioma, dilacerado, à época, pela Guerra dos Trinta anos, que findava.
No fim do capítulo sexto, um integrante do grupo se depara com corpos que flutuavam rio abaixo, próximo ao local da reunião, como dura advertência da barbárie terminal. Aos que estavam se dedicando a restaurar uma paz duradoura, apostando no idioma como instrumento político relevante, a advertência dos corpos lacerados tem o condão de lembrar que o idioma e os seres humanos compõem um todo único, universal, indivisível: “um” é o “outro” e o “outro” é o “um”. Valha: a discussão da linguagem e do significado emprestado às palavras é uma questão profundamente política e cada discurso encerra, independentemente da neutralidade do seu emissor, uma proposta de conclusão, um significado. A crítica de Grass feita a Zesen, o personagem que se defronta com os corpos, é a seguinte: “Acossado pela linguagem não teve tempo de horrorizar-se”.
Proponho a seguinte reflexão: não estaremos, hoje, acossados pela linguagem, nos submetendo a um futuro horror? Explico-me. O significado de palavras como “austeridade”, “equilíbrio macrofinanceiro”, “guerra ao terror”, “corrupção da política”, não escondem objetivos que não estão expressos formalmente nas palavras, mas que querem dizer -mais além das palavras- que, para sermos bons e justos, devemos compartilhar de uma visão de mundo, que vem do cálculo econômico imediato, não do humanismo intuitivo ou das fórmulas iluministas mais justas?
Passo a exemplificar: “austeridade”, reflete em quem? Quem precisa ser “austero”, para sairmos de uma crise? Os que tem excessos de bens e recursos, para viver a vida livre e fartamente, ou os que tem o mínimo para uma vida decente, com três refeições diárias e um teto razoável?
Vejam: se “austeridade” significar menos, para os que tem menos, na verdade a palavra “austeridade” fica esvaziada do seu significado originário e passa a ser “captura”. Captura de direitos, para não mexer nos privilégios, consolidados na sociedade dividida em classes. É o percurso do horror, ou seja: descartamos os corpos que descem o rio, a fome dos povos despojados dos seus direitos, conquistados na modernidade democrática (pelos impulsos socialistas e socialdemocratas do século passado) e consideramos como “direito adquirido”, o direito de acumular riqueza de maneira infinita.
Vejam: se “austeridade” significar menos, para os que tem menos, na verdade a palavra “austeridade” fica esvaziada do seu significado originário e passa a ser “captura”. Captura de direitos, para não mexer nos privilégios, consolidados na sociedade dividida em classes. É o percurso do horror, ou seja: descartamos os corpos que descem o rio, a fome dos povos despojados dos seus direitos, conquistados na modernidade democrática (pelos impulsos socialistas e socialdemocratas do século passado) e consideramos como “direito adquirido”, o direito de acumular riqueza de maneira infinita.
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