Do Observatório da Imprensa
O Brasil ficou chocado com os 84 segundos de imagens em preto e branco que assistiu nos principais telejornais do país na sexta-feira, 28 de agosto. Mostravam as cenas violentas de um assalto à luz do dia numa avenida movimentada de São Bernardo do Campo, SP, quando o ladrão esmurra o vidro de um carro, arranca a motorista que o dirigia, joga a mulher no chão e arranca com o veículo.
O ataque: aos 15 seg, o homem começa a esmurrar a porta da motorista.
O recuo: aos 21 segundos, o carro branco atrás dá marcha a ré para se afastar do ataque.
A fuga: aos 25 segundos, o carro de trás manobra pela direita e foge dali contornando a van.
A omissão: aos 59 segundos surge alguém para ajudar, enquanto os carros passam sem parar.
(Reprodução de fotos ABCD Maior)
(Reprodução de fotos ABCD Maior)
Foram cenas captadas às 8h da manhã do sábado anterior, 22, pelo sistema de segurança da prefeitura, num trecho da avenida José Fornari, no bairro Ferrazópolis, e divulgadas pelo jornalABCD Maior. Repetida exaustivamente, a sequência impressiona pela brutalidade, que todo mundo vê. Os telejornais viram e reprisaram. Mas, o jornalismo fracassou em sua missão básica ao não ver, ali, o que devia ter visto, registrado e denunciado.
Vamos rever a cena captada com neutralidade pela câmera da avenida e ecoada com insensibilidade pela imprensa brasileira – acessível no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=sQLZ6xyykNw.
Um homem de menos de 30 anos aproveita o trânsito parado, circunda por trás de um Honda Fit, como se fosse cruzar a avenida, e aos 10 segundos da gravação se volta de repente em direção à porta da motorista. Com inesperada violência, começa a esmurrar o vidro. O carro tenta arrancar. O primeiro murro acontece aos 15 seg. Aos 16 seg, um segundo murro. Aos 17, o terceiro. Ele força a abertura da porta aos 18, que se abre no segundo seguinte.
Com violência, puxa para fora a motorista, uma senhora de 64 anos, e a joga sobre o canteiro central da avenida, aos 25 segundos. Ele toma o lugar da motorista e arranca com o carro. Outra mulher, que estava no banco de passageiro, consegue sair pela porta direita, pega uma bolsa caída na avenida e vai ao encontro da amiga, caída sobre o canteiro central. Aos 59 seg, enfim, um homem cruza a avenida ao encontro das duas mulheres, para prestar algum socorro.
Na câmera e na consciência
A motorista de 64 anos, a psicopedagoga Rosa Maria Costa, deslocou o tornozelo e sofreu quatro fraturas na perna direita. O ladrão acabou capotando o carro na Via Anchieta e, no acidente, ainda atropelou um homem de 65 anos. Um carro parou para socorrer, o motorista desceu e o ladrão roubou o outro carro, desaparecendo. Um fato nada estranho na Grande São Paulo, onde acontece um roubo ou furto de carro a cada quatro minutos. Entre janeiro e julho, na maior região metropolitana do país, 74.129 veículos foram surrupiados por bandidos.
O que mais espantou na cena de violência em São Bernardo, que todo mundo viu, foi a cena que a imprensa não viu, não comentou ou desprezou. Ninguém da TV, rádio ou jornal, nenhum colunista, nenhum blogueiro, nenhum militante das ubíquas redes sociais destacou o vergonhoso espetáculo coletivo de acovardamento, omissão, negligência e falta de solidariedade que marcou o entorno da agressão na avenida.
Está tudo lá, gravado para sempre na câmera da TV e na consciência envergonhada de quem tudo viu e nada fez. Ou fez errado. Como o motorista do carro branco, provavelmente um Corolla, parado imediatamente atrás do carro atacado pelo assaltante.
Quando o agressor desferiu seu terceiro murro na porta, aos 17 seg, o motorista do Corolla começa a dar ré no carro. Se tivesse feito o contrário, acelerando em direção ao atacante, que não estava armada, ele teria frustrado a agressão e afugentado o agressor. Em vez disso, o carro branco recua uns dois ou três metros, lentamente. No momento em que Rosa Maria é jogada na avenida, o Corolla vira à sua direita e desaparece de cena atrás de uma van parada ao lado, com um motorista, também inerte, à direção. O carro roubado, o Corolla e a van arrancam quase ao mesmo tempo, enquanto a vítima rolava na avenida.
No canto inferior direito da tela, três homens passam pela calçada, indiferentes ao drama das duas mulheres no canteiro central. Só aos 59 seg aparece um homem de jaqueta preta, que atravessa a avenida para socorrer as duas mulheres. Durante os 84 segundos que dura a cena gravada, o que se vê e ninguém comenta é um desfile pusilânime de indiferença, de gente que não se importa, que não vê, não olha, não para e não comete nenhum gesto de solidariedade. Além da van e do Corolla que fugiram da cena do crime, outros quatro carros, dois ônibus e um caminhão passaram pelo local, no sentido do carro assaltado. Do outro lado da avenida, no sentido inverso, passaram 21 carros neste curto espaço de tempo — e ninguém parou, nem por curiosidade.
Nesta sociedade cada vez mais integrada por redes sociais, cada mais conectada por ferramentas como Facebook, Twitter e WhatsApp, cada vez mais interligada por geringonças eletrônicas que deixam todo mundo plugado em todos a todo momento, a cena brutal de São Bernardo escancara o chocante estágio de uma civilização cada vez mais desintegrada, mais desconectada, mais desintegrada. É uma humanidade apenas virtual, falsa, narcisista, cibernética, egoísta, que se decompõe em pixels e se desfaz na tela fria da vida cada vez mais distante e desimportante.
Ninho da omissão
A polícia, sempre fria e técnica, recomenda não reagir em casos de assalto, para evitar danos maiores. No episódio deprimente de Rosa Maria, tratava-se não de reagir, mas de defender uma vida, de proteger um ser humano, de cessar uma agressão, de impedir um abuso, obrigação que cabe a todos e a cada um de nós. A reação de um, um apenas, motivaria o auxílio de outro, e mais outro, numa sucessão de atos reflexivos de autodefesa em grupo que explicam a evolução do homem da caverna para o abrigo solidário da civilização.
Ninguém fez isso — na hora certa, com a firmeza necessária, com a generosidade devida, com a presteza impreterível. Esse espetáculo coletivo de insensibilidade e de crua indiferença atropelou toda a imprensa, em suas várias plataformas. Naufragaram até mesmo os programas e apresentadores que vivem da violência explícita e cotidiana de nossas cidades, grandes ou pequenas, com seu festival interminável de ‘mundo cão’.
Os programas das grandes redes de TV, que cruzam as manhãs e tardes do País com a tediosa banalidade de sangue, morte e violência do cotidiano, se refestelaram com a caso de São Bernardo, reprisando várias vezes a cena da avenida. Como sempre, no estilo furioso e mesmerizado de todos, despontou a tropa de elite da truculência na TV, sob o comando de José Luiz Datena (Band), Marcelo Rezende (Record) e Ratinho (SBT). Aos gritos, aos berros, no jeito gritado de um e de todos, ecoaram como de hábito a visão policial e teratológica da realidade, deixando de lado a preocupação social de uma segurança pública falida e desarvorada pelas balas perdidas da incompetência dos governantes.
Só esqueceram do entorno, da cena explícita de covardia e indiferença das pessoas que testemunham, assistem, presenciam, mas não interferem, não intervêm, não reagem. Ninguém lembrou do exemplo de São Bernardo para denunciar esta falsa sociedade compartilhada, mais preocupada em seus interesses compartimentados, que nenhuma rede social humaniza ou aproxima, a não ser virtualmente.
Um jornalismo que não vê o que é necessário, que não percebe o contexto além do texto, descumpre a sua missão. Esconde a realidade, ao invés de revelá-la. O repórter fiel ao seu ofício deve estar atento ao murro do assaltante no vidro do carro. Mas deve prestar atenção maior ao Corolla branco e aos carros que passam por ali, indiferentes ao que se vê e ao que acontece.
O bom jornalismo sabe que é nesse ninho da omissão que cresce a violência e prospera o fascismo.
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Luiz Cláudio Cunha, jornalista, é autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008)
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